Quando assistimos uma série, lemos um livro ou vemos um filme, tendemos a nos identificar profundamente com algum personagem. É possível se identificar com os personagens por qualidades que desejamos em nós mesmos, por ódio, por raiva, por medo, etc. Isso acontece porque há algo de universal em todos os best sellers. Algo que apela em nosso íntimo. O mesmo acontece quando estudamos mitologia, qualquer que seja. Para fins didáticos, comentarei a mitologia grega.
É importante ressaltar, que como pesquisador e psiquiatra, Carl Gustav Jung, fundador da Psicologia Analítica, foi um suíço que viveu no século XX. Por essa razão, suas referências de mundo e pesquisas foram focadas em suas observações de pacientes em sua clínica. Sendo assim, suas pesquisas giraram em torno da Europa e Estados Unidos. Os neo-junguianos, como são chamados os novos pesquisadores da Psicologia Analítica, no entanto, aplicam sua teoria expandindo-a para outras culturas e civilizações.
Quando analisamos uma história da mitologia grega, Afrodite, a deusa do amor, Ares, o deus da guerra, Zeus, o deus dos raios e senhor do Olimpo, isso dialoga conosco. Todos temos um pouco de cada uma das representações dessas emoções. Nesse sentido, Jung (2014, p. 263), nos ensina que:
"se o mito fosse simplesmente um resíduo histórico, teríamos que indagar a razão pela qual já não desapareceu há muito tempo no depósito de lixo do passado, continuando a influenciar através de sua presença até os mais altos cumes da civilização."
Isso quer dizer que todas as histórias, mitologias, contos de fadas, filmes, séries e reality shows despertam em nós algo coletivo em toda a humanidade. A moderna nova neurociência mostra que nas mais diversas culturas, as expressões faciais referentes às emoções são comuns à todas as pessoas, mesmo que não tenham sido ensinadas. Mesmo não vivendo para conhecer esses recentes estudos, Jung, já sabia que havia algo de intrínseco na humanidade. Algum tipo de rede invisível que dividimos e acessamos ao longo da vida. Uma história de sabedoria coletiva da humanidade. Ele chamou essa rede de conhecimentos universais de “inconsciente coletivo”. Para ele, o inconsciente coletivo é algo que acessamos, mas não podemos nos “apropriar”. Ele não tem um espaço limitado, e não pode ser plenamente “conhecido”. Nos damos conta às vezes de sua dimensão, quando nos ocorre as semelhanças entre nós e os outros.
Porque existe o inconsciente coletivo, os autores de best sellers são capazes de produzir personagens com os quais nos identificamos, pelos quais sofremos, nos emocionamos, sentimos raiva, defendemos, e nos opomos. Esses personagens, como no caso da mitologia são nada mais nada menos que projeções (como se estivéssemos usando um aparelho de projetor. O aparelho somente reflete aquilo que está nele), ou seja, nós apenas vemos aquilo que habita em nós.
Quando julgamos o comportamento destemperado de Ares em uma guerra, podemos estar dialogando com nossa luta interna, ou com a luta que travamos na relação com o outro. Quando julgamos a intensidade do amor com que Afrodite demonstra, estamos identificando aspectos da nossa própria fragilidade e fortaleza quando amamos alguém. Esses são apenas alguns exemplos e claro, algumas possibilidades de análise para refletirmos. Cabe lembrar que esse texto não tem a intenção de exaurir as múltiplas possibilidades de análise dos mitos e nem propor diagnósticos reducionistas. Apenas gostaria de introduzir a temática da importância das histórias contadas e recontadas ao longo dos anos sob a luz da Psicologia Analítica e propor uma provocação acerca de como tudo que vemos, na verdade está em nós. Isso em momento algum dispensa o valor e a possibilidade de desenvolvimento na condução de uma análise bem-feita por um terapeuta capacitado.
Curioso pensar que aquilo que rejeitamos, achamos imoral, perverso, sombrio, também habita em nós. O ser humano é composto de dualidades. Quando escolhemos uma conduta, automaticamente abdicamos de outra. Supomos que estamos assistindo um filme sobre um assassinato. Todos teremos nossa própria opinião sobre o assassino. A consciência enquanto espaço psíquico, tem a função, coordenada pelo ego, de delimitar, analisar, refletir, induzir, caracterizar, selecionar, entre outras. Nesse momento, quando assistimos um filme sobre um assassinato, criamos um juízo de valor. “O personagem deve ser preso.” “Mas ele tinha motivos.” “O filho dele foi sequestrado.” “Mas é contra a lei.” Essa ponderação que fazemos, na sutil decisão entre bom e mau, certo e errado, moral e imoral, é a atuação da consciência. Ou seja, se por um lado, na atitude consciente julgarmos que o assassino é mau, nosso inconsciente tem uma atitude compensatória. O inconsciente vai de certa forma guardar a informação contraditória de que aquilo foi em alguma medida “bom”. A consciência está sujeita às normas da civilização da qual vivemos. E como é importante, não é mesmo? Se pudéssemos ser apenas impulsivos, servindo aos nossos reflexos mais primitivos, não haveria humanidade. Portanto, caro leitor, não estou defendendo a postura “imoral”. Somente, para fins didáticos, estou explicando que perante a Psicologia, bom e mau habitam nosso ser.
Quando vemos um personagem desprezível, que realmente nos desagrada, o que daquilo há em nós? O questionamento é válido na medida em que, quando compreendemos que talvez aquilo que nos desagrada é como nosso, surge a possibilidade de nos libertarmos. O ditado ensina: “Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você”. Já pensou se fizéssemos com o outro o que ele faz que nos afeta? Como ele reagiria? Será que o incomodaria? Se isso acontecesse, veríamos em nós o que há de ruim neles. Não me entendam mal, todos nós queremos esconder nossos “fantasmas no armário”. Mas é um passo importante reconhecer, que todos temos! Quando saímos da postura do absolutismo moral de que somos perfeitos e todos os outros estão tentando nos machucar, compreendemos um novo aspecto da nossa psique. Compreendemos nossa humanidade!
Referência: JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
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